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o que é moe?

Pronunciado moê em japonês, conota intenso sentimento de afeto ou fofura por personagens de anime, mangá e videogames como se fossem reais ou “larger than life”. Essencialmente, uma gíria otaku. Com o tempo passou-se a usar moe para se referir a qualquer objeto, por exemplo, um chaveiro associado a um personagem querido ou um livro muito estimado contendo tais personagens.

A cultura do moe, alguns contrapõem,está afiliada a uma falta de vontade ou capacidade de amadurecer, um ímpeto de estimular o retardamento da fase adulta, uma espécie de conforto e nostalgia do que é jovem, inofensivo e amigável, sempre que a antítese, o “mundo adulto”, seja considerado aquilo que não pode aceitar “o fofo”, a ternura, ou seja, sempre o mundo adulto se torna esteticamente insuportável.

A palavra data do fim dos anos 1980 a começo dos anos 1990, sendo um neologismo japonês. Sua etimologia é imprecisa. Muitas teorias para a criação do termo foram levantadas. Personagens moe foram difundidos na mídia e na economia japonesa, tornando-se um negócio altamente lucrativo. Campeonatos em que se julgam coisas mais moe que outras, presenciais ou online, são comuns no Japão. Um dos mais célebres é o organizado pela Ethics Organization of Computer Software, companhia oriental a despeito do nome ocidentalizado. Alguns críticos – no sentido amplo de “estudo, investigação”, não de “negação” ou “rejeição” – do fenômeno moe são Tamaki Saitou (psicólogo, nascido em 1961), Hiroki Azuma (autor e filósofo nascido em 1971) e Kazuya Tsurumaki (produtor de anime nascido em 1966).

A evolução do uso do termo é complexa. Se se usa moe, quer-se conotar que não apenas “se aprova” ou “se gosta” ou “se curte” a pessoa ou objeto, mas nutre-se por ele(a) um sentimento mais forte. Mas o principal do conceito é que se trata de um objeto inacessível ao apreciador, isto é, que nunca poderá lhe corresponder, pois não é algo vivo. Quando muito, aceita-se o emprego de moe a pop idols, normalmente tão distantes do fã que jamais poderá haver uma relação recíproca autêntica entre apreciador e apreciado. Alguns chamam moe de um pseudo-romance, mas nunca um “romance propriamente dito”.

ETIMOLOGIA

Muito se discute sobre o surgimento do termo. John Oppliger, crítico de anime, apresentou várias teorias. Algumas das mais aceitas vinculam moe ao nome próprio de algumas personagens (femininas) muito populares no mundo dos animes, como Hotaru Tomoe (a Sailor Saturn e “goth-girl” de Sailor Moon, 1992, imagens acima, como Hotaru no cotidiano e seu alter ego guerreiro)¹ – Tomoe é escrito em kanji como 土萌, apresentando o mesmo kanji no sufixo usado no termo moe, o que em japonês não é sempre o caso (mesmo sílabas que transliteramos com as mesmas letras podem variar em kanji). Outra possibilidade seria derivar moe diretamente de Moe Sagisawa,  da obscura animação Kyōryū Wakusei [Dinosaur Planet] (1993), portrait abaixo. A massificação do termo se deu apenas no biênio 1993-94.

¹ Eu particularmente não vejo tanto o apelo “fofo” com Hotaru: prefiro a Sailor Venus!

O psicólogo Tamaki Saitō, pelo contrário, acredita que o termo vem do verbo japonês para brotar, germinar, moeru (萌える). Já Ken Kitabayashi, do Nomura Research Institute, define moe como “estar fortemente vinculado a um ideal”, justificando dessa forma a terminologia: seria um trocadilho envolvendo outro verbo nipo para brotar (moyasu, 萌やす) e seu homófono imediato, moyasu, 燃やす, queimar em português. Atenção, pois este queimar é usado pelos falantes exclusivamente no sentido figurado, diferente de nós, que podemos utilizá-lo: 1) para denotar a ação química do fogo; 2) mas também o sentido alcançado pelos japoneses com moyasu: queimar de fervor ou paixão, arder por dentro.

O antropólogo Patrick Galbraith é o primeiro ocidental a entrar na disputa, citando Morikawa Kaichirō, quem acredita que o termo nasceu em fóruns de internet como o NIFTY-Serve e o Tokyo BBS, já nos anos 90 (basta lembrar que o Japão é um país muito mais tecnológico e a world wide web integrava suas vidas muito antes de integrar a nossa, de forma ampla). Em japonês bishõjo quer dizer “belas garotas”, e foi em fóruns de fãs masculinos discutindo esse tópico que moe como palavra repetidamente significando o mesmo circuito de idéias teria aparecido pela 1ª vez. Galbraith argumenta ainda que moe tem suas raízes no desenvolvimento de personagens bishõjo na subcultura dos animes e mangás dos anos 70 e 80 (como veremos mais abaixo). Ele enumera, p.ex., o “boom lolicon” dos 1980 como um desses episódios, “terreno fértil para o fervor com que character designs passaram a ser acolhidos”¹ naquele segmento cultural.

¹ Galbraith, The Moe Manifesto, 2010.

Noutra vertente, Ichikawa Koichi, um dos membros do comitê promotor da Comiket (sigla para Comic Market, uma espécie de “Anime Friends japonês”, de periodicidade semestral), acredita que Lum de Urusei Yatsura (acima) seja tanto a fonte do termo moe quanto do conceito de tsundere. Outros dão essa proeminência, a mais antiga hipotetizada, a Clarisse de The Castle of Cagliostro, longa-metragem de 1979 de Hayao Miyazaki. Há no Japão um componente pedofílico (ou beirando o pedofílico) e semi-incestuoso ou diretamente incestuoso que parece nunca se separar de noções de moe ou tsundere (mas tsundere não é nosso foco momentâneo): neste enredo o irmão mais velho de Clarisse, Lupin, instiga o personagem conhecido como Conde a casar-se com sua irmã, que tem metade da idade do marido em potencial.

Hiroki Azuma, crítico cultural, identifica o fenômeno moe em seu sentido completo e final à aparição bem mais recente de Rei Ayanami em Neon Genesis Evangelion (à direita). Ele argumenta que antes dela as personagens femininas cumpriam papéis apenas passivos e arquetípicos nas estórias. Rei é conhecida por cultivar uma relação apenas fraternal com Shinji Ikari (sendo, ao mesmo tempo, o clone de sua falecida mãe, ou seja – negando-se ou superando-se, pelo menos relativamente, neste enredo, o “universal freudiano” do complexo de Édipo!), a despeito das cenas cômicas tangendo o eroge na jornada (nada mais japonês que isso…); assim como Rei é muito creditada por, perto do fim da estória, rechaçar veementemente os sentimentos “filiais” dirigidos a ela por Gendo Ikari (falo do cânon do primeiro anime, que depois foi sofrendo modificações matizadas nas rei-maginações¹ do autor). Isso seria confirmado, segundo Azuma, pelo padrão adotado pela indústria, desde então, emulando a Gainax (produtora de Evangelion), ao inserir personagens compartilhando a psicologia de Ayanami (em geral uma natureza mais retraída) e mesmo sua fenotipia (pele basicamente pálida, cabelo azul).² Para os japoneses, efetivamente, a cor do cabelo dos e das personagens parece estar eivada de significados simbólicos e ajuda a decifrar algumas tramas mais crípticas.

¹ Brincadeirinha minha com re-imaginações.

¹ Curiosamente os esboços originais da personagem nada obedecem a esses parâmetros, conforme imagem adjacente.

APELO COMERCIAL

No século XXI o fenômeno moe, inicialmente algo de nicho, se expandiu mundialmente e ajudou a estagnada economia japonesa, faceta inegável. Em 2003, somando-se mídia impressa e audiovisual (e incluindo os games) o montante calculado para produções filiadas ao conceito moe (o que pode ser uma eleição bastante subjetiva, deixo claro) era de 88 bilhões de ienes (aproximadamente um terço do valioso mercado otaku inteiro, estimado em 290 bilhões¹ àquela altura).

¹ Alguns bilhões de dólares americanos, na conversão de moedas.

Nos anos 90 vimos uma “invasão japonesa” no Brasil, mas o fenômeno arrefeceu e só se repetiu com mais força nos 2000, para não mais se ausentar de nossas redes de entretenimento. Em 2009, Brad Rice, editor-chefe da Japanator (portal dedicado a notícias e reportagens exclusivamente no âmbito otaku), disse que “o moe se tornou um furacão econômico”, alegando que qualquer produto derivado do merchandising acaba sendo afetado pelo “carinho fanático” e pela “necessidade de fofura” do cliente nipo ou dos amantes da cultura nipo em outras nações, que estão sempre dispostos a pagar preços obtusos, desde que haja elementos conducentes ao moe nos objetos. A força do moe explicaria por que franquias não tão lucrativas do ponto de vista exclusivo de sua veiculação na TV ou como OVAs em fitas K-7 ou DVD (o anime de Neon Genesis Evangelion é um bom exemplo, precedendo, até, um mangá, sendo anti-natural nesse sentido) podem retroalimentar a indústria de brinquedos e souvenires de forma exponencial, explorando suas personagens (assim mesmo, no feminino, pois o moe para male characters seria algo raro ou inexpressivo na comparação), tornando-se, assim, um mega-sucesso comparável aos campeões de ibope e público.¹

¹ Aqui, novamente, me parece que Rei Ayanami “pales in comparison”, para usar uma expressão exclusiva do inglês e lembrando seu alvo e exangue tom de pele, com a tsundere-modelo Asuka Langley Soryu em termos de popularidade. Ou estou vendo coisas e opino mal (quem sabe é algo particular do Brasil, da América Latina?…).

John Oppliger (AnimeNation, hoje extinta) considera a primeira década do novo milênio, efetivamente, como a primeira do moe no mainstream (leia-se: comercialmente viável). Segundo Oppliger isso traz algumas conseqüências, dentre as quais: o conceito mais puro e casto de moe é naturalmente pervertido pelo grande público e a passagem do tempo, se tornando algo muito mais sexual ou pelo menos sexualizado em diferentes nuances. Ainda é algo fora do hentai ou eroge (pornografia, como chamaríamos no Ocidente), mas envolve uma sexualidade sublimada, uma fascinação pelo adorável e fofo que com certeza entranha suas raízes na libido do público (masculino e feminino, gay ou hetero). Antigamente, diz o mesmo comentarista, o moe era uma espécie de “troca assimétrica” (já que estamos falando de algo inanimado, porém produzido por artistas, num dos pólos) entre espectador e personagem; com o tempo, se tornou uma espécie de fetiche focal para os fãs (vinculando-se, portanto, ao termo fan service, uma componente obrigatória a partir da massificação dos produtos orientais). Oppliger cita algumas séries para referendar seus achados: K-On!, Lucky Star, Moetan“Todos esses enredos – se é que se os pode chamar assim – giram em torno de criaturas adoráveis, esquisitas, desajeitadas, pré-púberes, que despertam, inflamam e manipulam os interesses e afeições (muitas vezes não só do público mais velho que assiste, mas dos próprios personagens mais velhos embutidos na trama).”²

¹ MOETAN nem é, a rigor, uma “banda-desenhada” ou “desenho”, ou mangá ou anime, nos termos que definem essas modalidades artísticas: trata-se de uma espécie de curso de inglês levado para o formato mangá. Ao mesmo tempo que Moetan é uma brincadeira com moe + -tan, sufixo utilizado quando nos dirigimos a pessoas íntimas e mais jovens, do sexo feminino, no Japão, é também o acrônimo para seu verdadeiro propósito, a saber, “Methodology Of English, The Academic Necessity”, um método de aprendizagem do idioma estrangeiro.

² Oppliger, ‘Ask John: What Are the Defining Moé Anime?’, 2012.

Capa do primeiro volume (tankoubon) de K-On! (pronuncia-se “kay on”), mangá/anime “musical” e “escolar”.

Oppliger dirá que em vez de serem personagens que incidentalmente despertam o moe feeling, as protagonistas das referidas peças são moes encarnados, ou paródias, moes antropomorfizados, sem outra essência que as defina que o próprio conceito de moe. Numa só frase “elas querem ser adoradas” pelo público, são ferramentas meta-narrativas, não estão inconscientes da quarta parede, atuam de uma forma muito mais explícita e grosseira nesse sentido, deixando o story-telling prejudicado, segundo Oppliger.¹

¹ Com apenas dar uma olhada nos designs e nas sinopses dos enredos das 3 produções acima sou forçado a concordar, embora nunca tivesse ouvido falar de nenhum desses animes na vida!

ATRAÇÃO SEXUAL

Excitação sexual, como bem observou Oppliger, não está mais fora da equação do fenômeno moe. Poderíamos dizer que não há pornografia, mas sim erotismo ou, quando muito soft-porn, no moe de subtipo sexual. Há uma espécie de parâmetro que exclui um personagem da grande esfera do moe quando sua função erótica se torna “explícita demais” e preponderante. Qualquer coisa a partir desse ponto já está fora do sentimento de afeição carinhosa que é a essência do moe. Tōru Honda esclarece essa aparente contradição com a definição de que o moe é “um relacionamento amoroso, só que só dentro da cabeça do consumidor”, um relacionamento ideal ou platônico, de alguém que existe com alguém que não existe.

CONCURSOS

Há “competições” ou “rankings” informais para personagens, estipulando seu “grau de moe” e popularidade dentro das regras deste universo peculiar. Um exemplo retrospectivo seria o Anime Saimoe Tournament, organizado pelo fórum japonês 2channel, ativo anualmente de 2002 a 2014. Todos os personagens criados entre 1º de julho do ano anterior e 30 de junho do ano da enquete eram “elegíveis”. Havia uma média de 280 concorrentes/ano! O “torneio” contou até spin-offs como o RPG Saimoe, contando exclusivamente com personagens provindos de Role Playing Games, e o SaiGAR, a vertente masculina deturpada, espécie de enquete de “macho alfa do ano” (“manliest of men”), no sentido informado e satírico de “macho alfa”.¹ Esse tipo de evento teve sua maior audiência em 2006 e 2007, tanto que antes de 2006 todas as postagens, incluindo as regras, só existiam e japonês, passando então a ser anglicizadas a fim de recepcionar o público ocidental interessado. O que mudou com o tempo, também, foi que na enquete principal só personagens femininas eram autorizadas; a partir de 2011 moe passou a abrigar os dois gêneros, em enquetes separadas (não nos referimos ao SaiGAR, que existia de forma independente e se propunha na enquete a eleger outro tipo de figura, não a que desperta mais “enternecimento” ao expectador); e em 2015 ambas se fundiram num “concurso unissex”, embora as personagens femininas “sempre ganhem”!

¹ Pense no personagem Sanji Vinsmoke de One Piece: o manliest of man é quase sempre um cavalheiro, do estilo dos trovadores medievais, que possuem sua dama; ou, no caso dos mulherengos (o próprio Sanji), são sempre conhecidos por tratar as mulheres como sujeitos autônomos, não como objetos de gratificação sexual pura e simples, daí sua nobreza de caráter, relativamente falando.

Os Moe Game Awards são para bishōjo games em si. Além de “melhor bishoujo game” (que seria o Oscar do moe aplicado à indústria dos games), há subcategorias como “trilha sonora”, “character design” e “conteúdo erótico” (lembrando que para se sagrar campeão na categoria principal não importava tanto o carisma dos personagens, se o jogo fosse ruim, então essas categorias acessórias se justificam). Os Moe Game Awards deram seu pontapé inicial em 2006, sendo seu principal patrocinador a EOCS japonesa, organismo já citado acima (Ethics Organization of Computer Software).

CONTROVÉRSIAS SOBRE O TEOR E O EVENTUAL DESTINO DO FENÔMENO MOE

O psicólogo Tamaki Saitō considera o moe um tipo inédito da sexualidade humana. Saitō explica melhor essa afirmação contundente ao descrever que o otaku ou expectador na verdade sente uma atração sexual pelo mundo ficcional antes de pelos personagens “x” ou “y”, fazendo uma escolha consciente por ignorar a realidade enquanto aprecia seu “objeto amoroso”. Diz Saitou, ainda, que esse fenômeno não pode ser considerado uma parafilia (desvio sexual, doença, conforme catálogos psiquiátricos ocidentais), nem acarreta necessariamente em indivíduos disfuncionais (o popular virjão), visto que o moer saberia separar ficção de realidade, e teria uma sexualidade paralela, funcionando socialmente, no dia a dia, só que coexistindo com esse novo modo sexualizado e sexualizante de enxergar obras de ficção, tão recente em nossa História.

Hiroki Azuma é contrário à perspectiva saitoana, e diz que o moe não merece ser “hiper-complexificado” em teoria psicológica ou sexológica. Azuma acredita que o moe só perdura enquanto o leitor ou espectador avalia os personagens da obra, pequenas frações do seu dia, por assim dizer, sendo esse sentimento algo hierarquizado um pouco acima da “empatia humana pelo próximo”, mas não acarretando a existência de um terreno completamente novo e sem precedentes na sexualidade humana. O que há são graus de minimalismo: por exemplo, pode-se tomar Rei Ayanami como vedete (seria como o adolescente americano do século XX com posters de seus artistas preferidos, como Elvis Presley ou Marilyn Monroe); assim como pode-se ter apreciação por “meninas (todo tipo de menina cute) usando orelhas de gato” ou que usam “roupa estilizada de empregadas ou criadas” (faceta conhecida no lore do Japão -e também da Alemanha-, como retratado abaixo), ou seja, a eleição de partes do corpo ou de meros adornos como o objeto central de sua afeição moe. Se um otaku consegue reunir as três paixões numa só, melhor ainda (a personagem Faris seria um exemplo de moe female com orelhinhas de gato, sotaque de gato -?- e roupas de criada que utiliza no seu emprego, servindo otakus numa lanchonete).¹

¹ Todos esses aspectos “esquisitões” e a própria “capital do moe” Akihabara são muitíssimo bem-retratados numa visual novel (PC & al.) e anime, Steins;Gate. Pretendo trazer o review da visual novel em 2024.

A indústria do cosplay agradece!

Tōru Honda, contrapõe-se às duas visões anteriores, possuindo uma interpretação tão ou mais densa que o psicólogo Saitou, e ainda mais oposta às considerações “casuais” de Azuma. Para Honda, o moe não existiria a partir do fim do século XX como forma de expressão se não houvesse o longo interdito sexual imposto pela moral das religiões. Segundo ele, trata-se de uma atividade mental importante para redescobrir o mito e noções de religião que ainda fazem sentido para o ser humano, pré-requisito para a manutenção da espécie nas condições atuais. Para complexificar a análise, Honda observa que o tipo de “fetiche de animalização” (furry lovers), por exemplo, só passou a existir depois do grande estouro da bolha da economia japonesa. Antigamente o alvo da pulsão erótica dos indivíduos japoneses era 100% humano, pessoas da vida real. O público foi introjetando seus desejos conforme as relações sociais se tornavam mais e mais complicadas e impossibilitadas. O povo japonês, introvertido na mediana naturalmente, é, adicionalmente, submetido a tecnologias isolacionistas, que permeiam todas as culturas e possuem seus efeitos devastadores em todo o globo (como a internet), sem falar nos imperativos do budismo e outras tradições quase onipresentes no Japão, que impedem um comportamento mais desinibido nas ruas ou diante do sexo oposto (ainda mais graves e severos que as interdições e repressões cristãs, p.ex., pelo menos em sua formatação mais “tolerante” e “permissiva” dos tempos atuais).

A criação de um mundo onde a energia sexual pudesse “voltar ao jogo e se retroalimentar”, participando de um outro circuito minimamente ligado ao primeiro (o da vida diária), faz, portanto, todo o sentido. Adicione-se a isso a contradição capitalista de querer vender produtos que “ofendem a tradição e a moral” do próprio povo, exigindo-se, por exemplo, a liberação da venda de artigos eróticos em sex shops japonesas como em qualquer país de economia liberal e não-ditatorial do mundo moderno. Um barril de pólvora de contradições e de ciclos de culpa. Ou seja: se existe o consumidor, não existe o que o consumidor não possa comprar – a sobrevivência econômica do país o exige. Se a prostituição é proibida, por exemplo (não conheço a legislação japonesa a fundo, estou apenas fazendo uma abstração mais ou menos ingênua), por envolver outro ser humano (excluindo aqui a possibilidade de apelar ao mercado negro ou consumo ilegal, como na maioria dos países, inclusive o nosso), é normal que a “lei de mercado” se concentre na produção de personagens para “relacionarem-se” com os consumidores disponíveis e interessados, do ângulo mais malevolente do fenômeno moe.

Honda lembra que, apesar do caráter negativo e do sofrimento emocional envolvido em toda essa inibição compulsória, uma das virtudes do moe é ser inerentemente anti-machista, posto que apresenta uma espécie de antítese do ethos do indivíduo masculino padrão há até pouco tempo, que procura(va) relacionamentos de forma muito ativa e agressiva na realidade, agindo de maneira dominante sobre seus alvos, basicamente a outra metade da população (comportamento predatório, bastante freqüente no Japão pré-Segunda Guerra)! Enquanto isso, o mesmo tipo predador era um pai de família – supondo ter uma, o que aliás o cânone moral estipula rigorosamente – hiper-protetivo com as mulheres de sua própria família, evidenciando uma hipocrisia insustentável que é tão visível para nós hoje.

Kazuya Tsurumaki, que trabalha em funções de direção na indústria de animes, define moe como “o ato de preencher informações inexistentes sobre um personagem até torná-lo mais factível”. Concorde com esse take, o escritor Junji Hotta acrescenta que personagens nascem do instinto humano, razão pela qual é bem possível, provável até, interessar-se por vários deles de maneira intensa (personagens que os escritores criam com tanta meticulosidade espelhando características reais exatamente com o intuito de cativar seu público), de maneira mais intensa e freqüente que por pessoas reais consideradas desinteressantes, que supostamente são a maioria das pessoas com quem cruzamos no dia a dia. A arte permite, sendo assim, maximizar o número de personalidades interessantes com quem podemos “interagir”. Toshio Okada, apesar de ele próprio admitir nunca ter sido capaz de entender o moe de forma absoluta, consegue defini-lo como “não exatamente a condição de ser influenciado emocionalmente por meninas bonitas de mentira, mas uma perspectiva reflexiva que projeta um cenário em que isso pudesse acontecer com o eu do indivíduo”, ou seja, uma espécie de estado de simulação mental ou experiência conduzida pelo cérebro e circuito emocional da pessoa aderente ao moe.

No livro The Moe Manifesto, Galbraith define moe como uma resposta afetiva a personagens fictícios ou suas representações, o que está em linha com quase todas as micro-definições aqui fornecidas. O diferencial de Galbraith em seu livro, no entanto, é, numa abordagem multidisciplinar, aplicar o moe à política, economia e discursos culturais com competência acadêmica. Matthew Brummer descreve como, numa ação bastante pragmática, as forças armadas japonesas (que não podem usar armas, não são um exército propriamente dito) utilizam esse marco cultural a seu favor, em campanhas de alistamento, expostas em artigo de jornal, ‘Japan: The Manga Military’ (The Diplomat). Isso é o que se dá quando o meme vira realidade!

5 respostas em “o que é moe?”

[…] Associado com formas irrealistas e estilizadas presentes nos mangás, animes e videogames, [conforme abaixo] lolicon na cultura otaku é entendido como diferente da atração por materiais reais vinculados a garotas jovens ou atração direta por garotas jovens (parafilia, pedofilia, efobofilia) (Galbraith 2016, McLelland 2011b, Kittredge 2014). Dessa forma, o conceito de lolicon cruza com o de moe. […]

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