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koudelka (ps) (+18)

CONTRA-INDICADO PARA MENORES DE 18 ANOS

PlayStation

Koudelka

F I C H A     T É C N I C A

Developer Sacnoth

Publishers SNK, Infogrames

Estilos RPG, Survival Horror

Datas de Lançamento 30/11/99 (EUA); 16/12/99 (JP); 29/09/00 (EUR)

NOTA

6.8

Este jogo é pra…

(X) passar longe  (X) dar uma jogadinha de leve  (X) dar uma boa jogada  (  ) jogar freneticamente  (  ) chamar a rua toda pra jogar  (X) um tipo específico de jogador. Qual? RPGistas pacientes.  (X) incógnita

Koudelka é como um bom vinho tinto. Maduro, escuro e encorpado: se beneficia do paladar tão-somente dos mais velhos, os únicos capazes de apreciar seus aromas e gostos intensos em sutilezas. Trata-se de um jogo inteligente e belo que merecia mais reconhecimento do que ser apenas “o preâmbulo da trilogia Shadow Hearts (PS2)”.

Uma jovem numa capa preta trota com cavalo pelos sorumbáticos campos verde-acinzentados do Wales (País de Gales) na virada do século XIX para o XX. Uma soprano (voz mais aguda emitida por um ser humano) chora um hino monástico-gótico-religioso para compor o fundo da cena e o resmungo funerário de uma bateria sugere que a jornada dessa garota a esconder o rosto, avançando na veloz montaria, irá conduzir o jogador não só por mistérios como a legítimos acontecimentos desgraçados. É 1898. Logo, a jovem – que empresta seu nome ao jogo, por sinal – atinge seu destino: o monastério de Nemeton, uma instituição cheia de problemáticas histórias. Não há nenhuma outra locação no jogo inteiro, e a parte interativa da trama começa depois que a protagonista entra no prédio antigo pela janela do sótão. Não se sabe o que ela veio fazer ali ou o que vai encontrar, e por enquanto não há nem indícios disso. A claustrofobia vai devorando o RPGista por dentro. Tem gente que compara o clima pesado de Koudelka a Resident Evil ou Silent Hill no PlayStation, embora a ausência de ação em tempo real durante enfrentamentos desloque esta obra de tal eixo. Cômodos e corredores serão investigados até o fim do quarto CD de jogo (parece que a mansão vai ser do tamanho do mundo, mas é uma percepção ilusória: o jogo não passa das 25 horas), atrás de pistas sob qualquer aparência ou formato, incluindo bonecas de pano, cacos de vitrais coloridos típicos das igrejas cristãs e manuscritos de margens carcomidas pelo tempo.

Agora, para ser franco, faz um tempinho que ocorreu meu debute em Role Playing Games eletrônicos. Foi durante a aurora dos 8-bit nos anos 80. Ao longo das décadas surgiram grandes sucessos esporádicos, mas, junto, uma chuva de clichês que foi, aos meus olhos, desgastando e demolindo o estilo aos poucos. A proliferação dos contos de príncipe e princesa, enredos superestimados, conflitos pseudodensos entre famílias inimigas de sangue ou nações do tamanho de azeitonas e personagens unidimensionais demais propagandeados descaradamente pelas revistas “críticas” como “verdadeiros tratados de psicologia ambulante” – tudo isso e outras coisas – me repeliu ainda que a contragosto dos RPGs de videogame por um certo intervalo. Das nuvens, feito um anjinho, com minha vara de pescar, eu só esperei até um título atípico o suficiente aparecer para revitalizar minha fé no gênero, então lancei a isca. Os criadores de Koudelka – da Sacnoth – são em sua virtual totalidade ex-funcionários da (veja você!) SquareSoft, mas pode acreditar que a maior semelhança deste título gótico com os RolePlays da Square é a inclusão de quatro afinidades elementais para os feitiços e de duas afinidades (luz e sombra) para os monstros

-O maior choque do espectador-gamer comum no que tange às expectativas iniciais nutridas frente à experiência é que a heroína, Koudelka Iasant, rende tema para discussões inesgotáveis. Cruel, cínica e de língua venenosa, ela é desde o princípio perfeitamente ciente de seus consideráveis poderes mágicos e intelectuais e não tem o menor pudor de usá-los até contra seus companheiros mais íntimos de jornada. Quando primeiro ouvi sua voz de alcoólatra fumante inveterada (que soa muito mais madura que o timbre esperado para uma moça de 19 anos – pense em Scarlett Johansson no começo dos 2000!), recheada de indiferença, reformulei todas as idéias nascidas em mim ao contemplar aqueles olhos de corça prestes a ser abatida, manifestos na arte de capa do produto! Esta não seria mais uma protagonista de atitudes tão ingênuas quanto seu rostinho…

Lá dentro do maciço monastério, Koudelka, a Miss Misantropia 1898, vai juntar forças – mais por falta de opções do que por afinidade, creia nisso – com Edward Plunkett – sujeito loiro de rosto parvo mas que é na essência um criminoso cheio de idéias sobre o livre-arbítrio – e James O’Flaherty, um religioso fanático e estudante de teologia na universidade. Em termos superficiais, tem-se um trio com: 1) o especialista em magia; 2) a usina de força bruta do grupo; e 3) a versátil que corta um dobrado e não é ruim em nenhum dos departamentos, quer o físico ou o transcendental. No entanto, essa visão se resume a predisposições refletidas em estatísticas iniciais das fichas dos personagens. Koudelka é maravilhosamente flexível quando o assunto é armas e spells: cada personagem pode manusear ou dominar quaisquer dele(a)s. O auto-aperfeiçoamento – tão caro aos veteranos do Role-Playing – advém de um método solitário: uso repetitivo das habilidades e itens. No mais, quando chegar a hora propícia, pontos de habilidade (AP) serão concedidos para que o RPGista decida que atributos (e de quem) vai amplificar e articular com o todo, perfazendo assim um novo equilíbrio, a sua maneira – vigor, mágica, força, e até piedade (que gera um curioso efeito colateral: aumentando sua Piety, um personagem se torna menos vulnerável a spells dos adversários e também dos próprios companheiros, o que quer dizer que pode passar a não receber tão bem assim magias curativas de HP!) são customizáveis para cada integrante da enxuta trupe. Portanto, por meio do generoso leveling-up system, ability points podem ser injetados onde der na veneta, a fim de expressar suas próprias vontades e fantasias, deixando aquele que começou como o “melhor mago” do grupo como o mais incipiente em termos de magia, bem como fazendo do troglodita loiro um rapaz mais “espiritual”, e assim por diante!

Armas se quebram com freqüência, mas novas peças distribuídas pelo chão do mosteiro são uma praxe. O período histórico em que o jogo foi situado permitiu uma variedade interessantíssima de armamentos, desde adagas e arcos a shotguns primitivas. A metáfora do xadrez aplicada à formação do trio na tela no momento da batalha – em que Koudelka é a Rainha – muito me agradou (mas o sistema de batalhas em si, ao contrário, lembra muito mais o jogo de Checks [Damas], já que só se pode atacar [comer!] diagonalmente e mover 1 casa por turno). Cada duelo ordinário com monstros pode durar 5 minutos, por fatores como animações de golpes inevitáveis e lentas de dar dó. Até que eu não tenho objeções tão severas a respeito, já que amo a faixa que toca durante as batalhas. Mas o melhor pedaço do sistema de luta e que deixa as coisas intrigantes de verdade é definitivamente a forma lacônica como tratam o horror no game. Nem um único foe é nomeado ou explicado, e seus designs são tão surreais que essa lacuna (intencional) funciona como fator desorientador. Fantasmas sem cabeça que dão risadinhas macabras (sabe-se lá por onde – pelo buraco do cu, talvez…), torsos de carne igualmente anencefálicos com cacos de vidro enfiados em diversas cicatrizes pelo “projeto de corpo”, um atirador de três cabeças que caminha pelo teto, fetos gosmentos mil, lápides ciclônicas…

Cenas fortes!

Quebra-cabeças deveriam indicar soluções ou vice-versa, mas em Koudelka os dois podem ser estranhos um ao outro a maior parte do tempo, até que quando se tornam reconhecíveis na verdade se anulam, fazendo o enigma desaparecer de maneira frustrante. Quando os elementos são finalmente pensados juntos, o jogo parece resolvê-los automaticamente para você. Bem anti-climático, diga-se de passagem, ainda que se equipare a um alívio. Considerando os momentos em que Koudelka exige que você produza e execute uma solução completamente abstrata (para não dizer aleatória) para um problema – como achar o caminho no labirinto coberto por runas –, é até reconfortante que alguns dos enigmas da gameplay sejam desbaratados pela própria engine interna, poupando-lhe algum sofrimento, ainda que uma cota mínima dele.

O drama encenado entre o trio é o elemento mais ambicioso do storytelling, com extensas seqüências apinhadas de argumentos, meditações e baboseiras dialógico-metafísicas, como deve ser num RPG que bem emula alguns aspectos da existência que teimam em não se encaixar. Koudelka é… bem, a Koudelka (não vamos explicar de novo a falsidade do seu olhar de antílope!), Edward é um sujeito de fibras quando o calo aperta e o bispo (não é padre!) é pomposo em excesso e irritante para a maioria dos gamers. Essas cinematics de que falo, mais assíduas que as FMVs que contam com mais ação e introduzem reviravoltas no roteiro, rodam nos gráficos de jogo, e não em animações computadorizadas que apresentem melhor resolução e taxa de polígonos e ocupem bem mais espaço no compact disc. Não é dizer que a consistência desses textos seja irretocável; eles também falham, bem como as dinâmicas do restante do game, com suas batalhas alongadas além da conta e puzzles bestas ou ilógicos. Determinadas cenas perdem seu impacto dramático e explosivo porque são tão compridas que fazem o jogador perder o fôlego e sentir cãibras ou tédio. Outras estão visivelmente fora de tempo, vindo cedo ou tarde demais no script. Mas, em seu melhor, Koudelka pode simplesmente ser, em ocasiões específicas, o melhor RolePlay da máquina da Sony, uma vez que a intenção da dupla dinâmica Sacnoth-SNK foi oferecer entretenimento de qualidade para o público adulto e, de vez em quando, ela acerta! A tomada em que Koudelka está psiquicamente possuída, gritando e tendo espasmos enquanto revive a experiência de uma vítima de tortura que morreu no mosteiro é horripilante e arrebatadora. Outro ponto alto das cenas não-jogáveis é a conversa entre bêbados num banquete que após 4 minutos desemboca intempestivamente numa das revelações mais importantes do enredo, que concerne às razões da profunda misantropia da personagem Koudelka.

Ligeira e pitoresca observação sobre a (excelente) dublagem: ao passo que a narrativa ocorre há mais de 100 anos numa porçãozinha campestre do Reino Unido, todo o voice work é executado por americanos nativos dos States. Bem, o jogo nasceu mesmo, num primeiro momento, exatamente para o público norte-americano, e às vezes pode parecer uma exigência muito fresca ou acentuada, mas… ninguém estava pedindo o acento galês pronunciado àquela época; uma solução intermediária, como empregar atores britânicos, de inglês mais polido e aristocrático, bem que seria mais apreciada… Afinal, se os desenvolvedores encasquetaram que tinham de retratar o País de Gales em seu RPG, ora, que encarassem até o âmago a tarefa de retratar o nobre País de Gales!

Linha final – saiba beber da vinha de Koudelka com comedimento e não haverá traços de ressaca no dia seguinte!


Rafael de Araújo Aguiar é sociólogo não-praticante e um tanto apaixonado pela forma velha de se programar jogos

Lista de agradecimentos

GameFAQs:

Saikyo Mog

Bloomer

threetimes

Fein

versão 2 – 2013; 2025.

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