Por Rafael “Cila” Aguiar
Pouco conhecidos no Ocidente, os jogos Ys representam uma série de RPG/Ação criada e mantida pela Nihon Falcom. Na quase totalidade dos títulos, controla-se o guerreiro e aventureiro inveterado Adol Christin.
O primeiro jogo, subtitulado I: Ancient Ys Vanished, foi lançado em 1987 para PC-8801, hardware da mesma empresa por trás do Turbografx/PC Engine, onde o nome Ys se consagraria poucos anos mais tarde (pelo menos no Japão), a NEC. Desde então, a série se expandira por inumeráveis seqüências e plataformas. Em 2017, somados, jogos com Ys no título já haviam vendido quase 5 milhões de cópias.
O ETERNO FASCÍNIO DA ESTÓRIA DE BABEL
Em anos mais recentes outros personagens controláveis foram sendo adicionados ao universo ficcional de Ys (cujo nome faz referência a uma ilha fantástica que flutua no céu). Uma das localidades principais da série é a Darm Tower, onde todo o jogo Ys Origin, por exemplo, transcorre. Há uma nítida analogia entre esta e a Torre de Babel da bíblia: símbolo da engenharia e astúcia humanas (ou de quem quer que seja, como veremos adiante), a torre tinha por objetivo alcançar os céus, mas sua construção foi interrompida devido a uma catástrofe. Conta-se que antigamente Ys era um lugar puro e intocável, mas séculos de mau uso dos poderes mágicos emanados por um certo objeto, a Pérola Negra, puseram fim à era de ouro e trouxeram a corrupção e a decadência ao reino.
A verdade por trás da Darm Tower é que demônios de várias dimensões foram sendo atraídos pela escuridão inerente à magia que servia para o bem da humanidade de Ys, sem que os humanos o notassem de imediato. Tal escuridão acumulada, após os resultados trágicos que trouxe ao mundo, passou a ser conhecida nos mitos e contos sobre a criação e o passado deste mundo de Ys como a própria essência do mal.
Foi então revelado que, nos primórdios, antes dos humanos dominarem essa força supernatural chamada magia, Ys ainda não se localizava nas nuvens: foi ao descobrir as propriedades fantásticas da Pérola Negra que a civilização, constituída em sacerdotes e, partir daí, magos, erigiu, para sua própria proteção, um templo, o Palácio ou Santuário de Salomão, e fez com que a porção de terra em que ele fôra construído se elevasse aos céus e tivesse seu acesso estritamente controlado pelas castas governantes. Neste mundo, a figura dos demônios sempre existiu. Constituem várias raças capazes de andar sobre duas pernas e falar, mas suas aparências e desígnios são a maior parte das vezes horrendos. Além disso, até determinada época histórica, ignorava-se a existência de demônios ou seres em outros universos, e esses outros universos mesmo. Em Ys não havia, por exemplo, nenhum demônio alado. Portanto, mesmo que as terras a nível do mar possuíssem seus perigos e as cidades fossem construídas em locais já considerados livres da infestação de demônios, que ficavam relegados às áreas selvagens, o forte ou templo construído e levantado quilômetros acima do chão para ser a capital de Ys era considerado inexpugnável, e aquela sociedade muito próspera. As bestas ou demônios, por mais que pudessem ter poderes sobrenaturais, não conheciam a magia humana, e portanto suas habilidades não tinham qualquer vinculação aparente com a Pérola Negra.
A única saída destas criaturas, assim sendo, foi a de iniciaram o plano de construção da torre de Darm, para que um dia o paraíso, isto é, a terra flutuante de Ys, se lhes tornasse finalmente acessível, pois assim eles enxergavam essa terra distante e abundando em mágica negra. Os humanos, não obstante, não assistiriam essa empreitada ousada de braços cruzados, vindo a abortar completamente a tentativa dos demônios antes que a torre tivesse andares o suficiente para chegar a Ys. A torre tornou-se ruínas, intocadas e inabitadas, para servir de memória a quem se arriscasse num projeto semelhante. Infelizmente, a raça humana não contava que demônios de outras partes, atraídos pela Pérola Negra, e com conhecimento muito mais profundo sobre as origens da magia verdadeira que o dos demônios de Ys, pudessem surgir e transtornar todo o reino… Este é o pano de fundo essencial a todas as aventuras interativas, mas Adol pertence a um tempo muito posterior a tais acontecimentos.
VANGUARDA NA GAMEPLAY
A maior inovação da fórmula de Ys é seu método de ataque, que dispensava a reserva de um botão no joystick: elaborada e simples ao mesmo tempo, a mecânica dos primeiros jogos usava apenas o direcional, isto é, fazia parte dos movimentos-padrão do personagem. De espada ou outro tipo de arma em riste, Adol avançava em direção aos adversários, sendo necessária meramente a hit detection para decidir os resultados da colisão física: de modo geral, atingir inimigos de frente significa, para o jogador, receber todo o dano, ao passo que a investida tinha êxito se o controlador conseguia investir contra os monstros de algum outro ângulo ou de modo a atingir partes periféricas de seus corpos, incluindo não só as direções cardiais do primeiro jogo como as colaterais a partir do segundo. Ainda assim, Adol poderia receber dano marginal a depender de que parte do corpo do oponente resvalava em si, da velocidade com que investia e da ficha do personagem, isto é, do poder de ataque corrente de Adol. Sobre essa premissa nuclear foi erigido o sistema de jogo seminal de Ys. Este método de ataque, chamado bump system, tendo-se tornado defasado, deixou de ser usado nos títulos mais recentes.
Outra característica longeva e presente desde os primórdios nos jogos Ys é a barra de hit points auto-regenerável. Ao passo em que o bump system foi criação original da Falcom, um RPG anterior a Ys, Hydlide (NEC PC-6001, 1984), já usava a regeneração de HP.
Ys II introduziu os spells ou feitiços, pois Adol era apenas um guerreiro físico na primeira aventura, bem como a barra de MP (magic points). Já Ys III adotou, em vez da clássica visão panorâmica, a perspectiva side-scrolling, seguindo os passos da primeira continuação de The Legend of Zelda, reformulação na gameplay que foi mal-recebida pelos fãs (alegadamente, das duas séries) e posteriormente revertida em Ys IV. Outros críticos dizem que a inspiração inicial não foi Zelda II, mas sim Dragon Slayer, da própria Nihon Falcom, série de Action RPG que sempre foi jogada em 2D lateral desde a concepção. A mudança implicava automaticamente na necessidade da alocação de um botão para os ataques de Adol, o que também extinguia pela primeira vez o bump system.
Atendendo aos fãs, como já mencionado, Ys IV, em dois episódios independentes entre si – The Dawn of Ys e Mask of The Sun –, restaurou a gameplay original. Em Mask of The Sun: A New Theory, remake moderno, o bump system foi trocado por um sistema de combate mais ortodoxo (com uso de teclas para ataque e defesa), embora mantendo a perspectiva top-down. Ys V: Lost Kefin, Kingdom of Sand (no título americanizado) passou a seguir a tendência ainda hoje em vigor, isto é, um esquema de controle mais parecido com os Zelda 2D, em que Adol obedece os comandos do jogador, abandonando o combate por atrito, mas continuando a ser visto de cima.
Após muitas gerações de consoles usando apenas sprites, Ys VI viria a ser o primeiro a experimentar com polígonos, mas apenas parcialmente, mantendo outras estruturas sempre em duas dimensões. O uso de escudo foi descartado, tornando o jogo mais encaixado do que nunca no subgênero hack ‘n’ slash (troca de porrada em tempo real). A fórmula é mais simples e menos estratégica; em compensação, mais viciante. Episódios como The Oath of Felghana e Origin mantiveram este esquema.
Ys Seven foi ao mesmo tempo um passo atrás e outro adiante, complexificando o sistema de batalha de “n” maneiras e voltando a priorizar um estilo de luta mais conservador que possibilita a empunhadura de escudos. Podemos dizer que foi a maior revolução empreendida na série das que se sustiveram nas continuações, e a maior delas desde Ys 3, pois pela primeira vez o jogador pode assumir o controle de times, revezando quem é o líder, embora veja todos na tela se locomovendo em conjunto. Memories of Celceta segue no caminho das inovações, adicionando ainda outras regras e medidores para determinar o resultado de pequenas ações em meio aos combates simultâneos. Ys VIII e IX podem ser considerados, outrossim, aprimoramentos do sistema amadurecido e estreado no 7º título.
O LEGADO NÃO PÁRA DE SE EXPANDIR
O PC-8801 ou simplesmente PC-88, como é mais conhecido hoje no Ocidente, ainda é lembrado por hospedar as primeiras versões disponíveis da trilogia Ys clássica, tendo sido sempre o primeiro computador (um híbrido entre PCs ocidentais – hoje ubíquos – e console caseiro) a receber cada lançamento. Ports ou conversões para aparelhos rivais foram realizadas sob os auspícios de times como a Hudson, a Tonkin e a Konami, entre outros. Em 2011, Ys só perdia para Final Fantasy em termos de números de lançamentos no subgênero RPG, pelo menos considerando-se apenas franquias originadas no Oriente.
Conforme vários reviews no rafazardly, Ys 1 e 2 eram planejados como um só jogo, até que por dificuldades no cronograma do desenvolvimento e as limitações técnicas do período os criadores, Masaya Hashimoto e Tomoyoshi Miyazaki, tomaram a decisão de separar a obra num Book I e num Book II. Significa que em 1988, com o lançamento da continuação ou segundo livro, finalmente se cumpriu o desígnio original dos produtores.
Os primeiros remakes a apresentar Ys 1 e 2 reunidos, como era o plano original, deram-se no Turbografx CD e Windows DOS, por causa da mídia compact disc, capaz de alojar muito mais dados que disquetes ou cartuchos. Posteriormente o mesmo remake ou versões novamente melhoradas seriam distribuídas para PlayStation2, Nintendo DS, PSP, Android e iOS, ao longo dos anos 90, 2000 e 2010. Até hoje, Ys é elogiado por sua trilha sonora fora de série e as belas cutscenes utilizadas para contar o roteiro; e lembrado por ter sido um dos primeiros games a utilizar voice acting.
O primeiro de todos os jogos Ys a conter sprites pré-renderizados, para simular 3D, foi o obscuro port do Book I para Sharp X68000 (1991). O uso de gráficos pseudo-tridimensionais se atinha, entretanto, a certas partes do corpo de alguns chefes de fase.
Depois da trilogia-base, ambos os criadores de Ys saíram da Falcom e fundaram a Quintet. A Falcom continuou com os direitos da série, que aterrissou nos 16 bits também no formato de trilogia (embora não do episódio 4 ao 6, mas do 3, que ganhou apenas conversões dos 8 bits para os 16, ao 5, significando, nos dois últimos casos, jogos inéditos – mas a presença de toda a “nova trilogia” no seu catálogo só se concretizou mesmo no Super Nintendo). Enquanto o SNES contou com 3 títulos, o Genesis, seu concorrente por excelência, recebeu somente um port de Ys 3. Segundo o cânone da série, a versão de Super NES para o 4º episódio, por muito tempo exclusiva, é a continuação oficial, enquanto que Dawn of Ys para Turbografx CD é considerada uma versão gaiden que possui, entretanto, eventos canônicos retrabalhados no game posterior Celceta. O primeiro remake de Ys 4 (SNES) é de 2005, para PS2. Ys 5 também não fôra remasterizado ou relançado, havendo aparecido com exclusividade para o Super Famicom até o ano de 2006, que representou sua ressurreição na máquina hegemônica da Sony, o PS2. O problema é que até hoje este título está confinado ao Japão, afora patches com traduções amadoras.
A série atravessaria um hiato de 8 anos nos consoles, período no qual apenas o PC recebeu alguns lançamentos Ys. Ys VI (2003), entretanto, reavivou o interesse pela série e manteve a gameplay de excelência. The Oath of Felghana, que não possui numeração, é considerado uma reexecução do zero – não um remake – de Ys 3, promovendo grandes mudanças no lore da franquia. Ys Strategy, primeiro fora do gênero RPG, foi lançado em 2006 para DS. Um MMORPG spin-off de Ys foi lançado em 2009 na Coréia do Sul e depois ganhou servers no mundo todo, mas 3 anos depois já havia sido oficialmente descontinuado em todos os continentes, demonstrando que o formato não casa com o estilo single player sempre adorado pelos fãs de longa data.
O jogo que mais explorou a mitologia de Ys, conforme relatei abreviadamente acima, foi Ys Origin, de 2006. Ele esclarece como, 7 séculos antes de Adol, Ys (a ilha no céu) e Esteria (o continente) se apartaram. Na verdade, a terra era inteiramente chamada de Ys; Esteria, a porção continental da ancestral Ys, é que foi batizada por esta época, em decorrência de como que haver perdido os antigos laços com o templo de Solomon, que de capital da grande nação de Ys passou a representar Ys inteira a partir da dissolução causada por invasores externos. Um detalhe interessante é que, controlando um dos 2 personagens principais, uma guerreira leiga em magia ou um mago nato sem aptidões físicas, o jogador acompanha a estória de 2 perspectivas distintas que são mutuamente contraditórias em seus pormenores. Um terceiro personagem controlável (mas que precisa ser destravado com o progresso da narrativa) faria a síntese histórica, reparando o subjetivismo no relato dos dois outros heróis (constituindo a partir daí o enredo canônico, conforme a Falcom).
A franquia nunca focou na parte gráfica e sempre foi uma vedete dos old school gamers, mantendo o estilo de jogo bidimensional, embora tenha migrado para a era dos polígonos no novo milênio, conservando o estilo artístico, sem explorar todo o poder dos hardwares para os quais foi lançado, talvez com exceção dos celulares. Essa característica faz de Ys perfeito para portáteis como as famílias PlayStation (PSP e Vita) e Nintendo (DS, 3DS, Switch). Ainda assim, os jogos Ys marcam presença na geração doméstica de consoles (PlayStation4&5, Xbox One e Series) graças à proliferação das vendas via download, embora até o momento não haja acordo com a Microsoft para distribuição pela Xbox Live. Em contrapartida, quase todos os jogos Ys estão, numa versão ou noutra, disponíveis via Steam (com a notável ausência do capítulo 5).
Uma das maiores confusões para usuários de PC no Ocidente se refere à nomenclatura das compilações ou remakes. Muitos se põem em dúvida sobre se estão comprando versões diferentes ou apenas repetidas dos produtos, e em que consistiriam tais diferenças. Os remakes de Ys 1&2 para computador sofrem desse problema, primeiro pela demora do Ocidente em absorver o nicho dos J-RPGs, mas em segundo lugar por negligência da Falcom. Complete é o nome da versão definitiva, porém assim que se abre o jogo a tela-título diz Eternal, que é uma versão anterior, lançada para DOS nos anos 90. Não significa que o gamer está diante de um remake defasado vendido fraudulentamente como se fosse o mais completo, mas tão-só que joga a Complete edition (segundo remake) com a tela-título de Eternal, porque a publisher se esqueceu ou não quis atualizá-la! Seria realmente raro alguém comprar a versão Eternal por engano como CD (nem DVD é!) novo, já está fora de circulação no momento, e não pode ser comprada via Steam; e adquiri-la em suporte físico hoje seria obter um item de segunda mão, raro e caríssimo, provavelmente leiloado pelo ebay. O que agrega ainda mais confusão é que por um período de tempo a Falcom também vendeu a edição Complete de forma separada, como I ou II, mas com Chronicles no lugar da palavra Complete, embora fosse o mesmíssimo jogo, apenas em 2 arquivos ou programas separados! Alguns fãs e críticos preferem se referir ao último remake como Chronicles, por outro lado, para não deixar lugar a dúvidas, demonstrando que querem se referir de fato ao último update de gráficos e engine sofrido pela dupla de jogos iniciais da série, estejam eles no mesmo pacote digital ou não. Este último exemplo se aplica a mim: comprei Ys I & II Chronicles na Steam, compra única, porém na minha biblioteca o jogo aparece como 2 jogos separados. Em 2013, para embrulhar um pouco mais nossas cabeças, foi lançada a “versão definitiva definitiva” ou “definitiva com conteúdo extra” (até que se prove o contrário!), denominada Ys I & II Chronicles+. Isso mesmo: o sinal de mais (+) é tudo que distingue este novo-velho lançamento de seus primos-irmãos (e Y1&2C+ representa, na realidade, Complete com conteúdo inédito, já que vem num jogo só). Portanto recomenda-se cuidado na hora de comprar!
Em 2010, a Xseed Games, atual publisher de Ys na Steam, comprou o script de uma tradução de fã (amadora, sem fins lucrativos) para The Oath of Felghana, que ainda não existia em inglês, de autoria de Jeff Nussbaum. Esse evento foi considerado sem precedentes e um marco da indústria, já que até a data traduções não-licenciadas eram consideradas, tecnicamente, crime de infração a copyrights, apenas por implicâncias indiretas, i.e., obras de tradução derivadas desautorizadas pelos detentores da marca. O crime, para deixar claro, se referiria à própria Xseed Games, não a Nussbaum. Mas como a Xseed é a representante oficial, autorizada pela Falcom, seria um absurdo completo alegar tal infração legal. Espera-se que a indústria modernize suas práticas e lute por mudanças que ampliem a flexibilidade dos direitos sobre traduções quando essa compra e esse uso são de mútuo interesse dos desenvolvedores e do público consumidor. A Xseed, demonstrando que não atuou de forma isolada e estabanada no caso anterior, mas que falava sério em sua proposta, veio a adquirir posteriormente scripts amadores para usar nos seus lançamentos americanos de Ys 1&2 e Origin.
O evento de importância mais recente ocorrido na franquia foi a adaptação ocidental de Ys 9 para PS4, em 26 de setembro de 2019.
TO BE CONTINUED…!
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